Califórnia espelha problema da habitação nos EUA

Rafael Balago – Folha de S. Paulo

Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha passa a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.

Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar. Donald Trump e sua família se tornaram bilionários erguendo e negociando imóveis. Curiosamente, a principal promessa de campanha do republicano na habitação não é fazer mais casas, mas sim dificultar a edificação delas.

Nas últimas semanas, o presidente passou a dizer que fará de tudo para impedir a construção de moradias mais baratas perto de subúrbios americanos, aquelas regiões que nos acostumamos a ver nos filmes, com casas de jardim na frente e quintal ao fundo.

"As pessoas que vivem seu estilo de vida de subúrbio dos sonhos não serão mais

incomodadas ou atingidas financeiramente por casas de baixo custo em suas

vizinhanças", afirmou Trump em julho, ao encerrar um programa criado por Barack

Obama que buscava facilitar o acesso à moradia popular.

Esse discurso vai na linha do comportamento apelidado de “not in my backyard” (não no meu quintal): pessoas de classe média e alta buscam impedir a construção de residências mais baratas perto de onde moram, por temer que a região perca valor,

prestígio ou segurança. “Esse discurso é comum em aplicativos fechados de mensagens entre vizinhos”, conta Juliana Torres, 30, pesquisadora que mora na Califórnia há cinco anos e se mudou de Los Angeles para Berkeley em julho.

Ela conta que lá é comum o uso do app NextDoor, que conecta moradores de um mesmo bairro. Para entrar nele, é preciso de um código enviado pelo correio —uma maneira de evitar a presença de intrusos. Cada comunidade que dificulta a construção de moradias agrava o problema da habitação nos EUA.

Faltam cerca de 3,3 milhões de casas para suprir a demanda do país, segundo dados da empresa de financiamentos Freddie Mac. "Na Califórnia, em 75% dos terrenos voltados à moradia, pode-se construir apenas uma casa a cada 250 metros", diz Paavo Monkkonen, professor de planejamento urbano na Universidade da Califórnia em Los Angeles. A Califórnia tem o terceiro custo de habitação mais alto do país, atrás do Havaí e do Distrito de Columbia —que engloba a capital americana, Washington—, de acordo com a consultoria Experian.

A pandemia esfriou o volume de negócios, mas não os preços. Em Los Angeles e San

Francisco, aluguéis de US$ 3.000 (R$ 16 mil) mensais por um apartamento de dois

quartos seguem sendo a regra.

Para comprar uma residência na Califórnia, é preciso gastar em torno de US$ 600 mil

(R$ 3,2 milhões), seis vezes mais do que no Arkansas e na Virgínia Ocidental, estados

mais baratos do país para morar.

A presença de grandes empresas de tecnologia, como Apple, Google e Facebook, e de

universidades desejadas por alunos estrangeiros atrai abastados, o que joga os preços

californianos para cima.

Assim, esse panorama faz com o que estado de maior PIB dos EUA também esteja no

topo de outro ranking: o de moradores de rua. São cerca de 150 mil pessoas nessa situação, segundo os últimos dados federais, de 2019. De cada quatro habitantes sem teto do país, um vive na Califórnia. "Com a pandemia, o problema se exacerbou. Em janeiro, havia 60 mil moradores de rua em Los Angeles. Com a Covid, criou-se um programa para alojá-los em hotéis, mas não havia quartos suficientes para nem 10% deles", estima Monkkonen.

Sem moradia, é comum ver pessoas dormirem em carros, o que gerou um debate em

universidades sobre liberar os estacionamentos das instituições à noite, para que alunos em dificuldades possam pernoitar.

Além da segurança, a busca por vagas em lugares fechados é uma forma de evitar que o automóvel seja guinchado. Em muitas ruas, só se pode parar em dias alternados. Quem se confunde com as datas pode ter o veículo apreendido e ficar sem teto de vez.

Para impedir que mais pessoas percam a casa em meio à pandemia, o governo da

Califórnia determinou um veto a despejos até janeiro de 2021. Outras medidas para

facilitar o acesso à moradia, no entanto, enfrentam resistência.

Apesar de a habitação ser um tema da campanha presidencial, a maior parte do poder de decisão sobre como ocupar as cidades fica a cargo de estados e condados (equivalentes aos municípios). Washington influencia mais na facilitação de financiamentos e liberação de dinheiro. “Cada governo local busca facilitar o acesso à moradia de acordo com sua realidade”, diz Carlos Leite, professor de urbanismo do Insper e do Mackenzie. “O problema é que a oferta de terra nas cidades uma hora acaba. Aí cabe ao Estado regular como usar melhor o espaço disponível para beneficiar mais gente.”

Rival de Trump, Joe Biden promete investir US$ 640 bilhões (R$ 3,4 trilhões) em um

programa federal para facilitar o acesso a casas próximas a locais de trabalho e de

escolas, com construções menos poluentes. "Nos EUA, as secretarias de habitação incluem a gestão do desenvolvimento urbano. As duas coisas andam juntas. Não adianta fazer casas isoladas do resto, como ocorreu no Brasil em projetos do Minha Casa, Minha Vida", compara Leite.

Biden quer usar o programa para combater a segregação espacial, uma característica dos Estados Unidos, em que bairros ricos são ocupados apenas por pessoas brancas, e áreas mais pobres, por brancos, negros e latinos. É onde a polícia costuma agir de forma mais truculenta.

Nos anos 1960, uma lei federal foi criada para tentar resolver o problema, sem sucesso. O programa de Obama, criado em 2015 e encerrado por Trump, tinha a mesma intenção, mas pouco avançou. As prováveis mudanças sociais do pós pandemia, como o aumento do trabalho remoto e de aulas à distância, podem trazer algum alívio e ajudar a baixar os preços, à medida que menos gente precisará morar perto das instituições de que fazem parte. "Quando terminamos a mudança para este apartamento, pensamos: se estamos fazendo tudo remoto agora, por que a gente não alugou uma casa maior em um lugar mais distante?", conta Juliana. “Pelo preço de Berkeley, talvez tivéssemos conseguido alugar uma fazenda", brinca.